Na dúvida, escrevo

Pj Godoy
5 min readSep 21, 2021

As marcas de bola na parede da Escola Municipal de Ensino Fundamental da rua Humaitá, em São Paulo, se materializam na memória de quem nem sequer ali viveu. Poupadas até da mão de tinta, demarcam na cabeça o frio na barriga, o nó na garganta, a trepidação no peito. Do torneio escolar ao Olimpo. Um pedaço de chão vira latifúndio. Um segundo, eternidade. Hoje, as linhas da quadra guiam as filas de vacinação. É o oásis à margem de um deserto indigesto e intragável. Nem em 100 anos de Paulo Freire aprendemos a lição. Não há esporte sem vida, nem futuro sem consciência de classe. O suor rega a fonte de quem luta por um lugar ao sol no país do atoleiro, e olha que, nem sempre, a sorte anda com o brasileiro.

A linha 5154–10 que leva ao bairro Santo Amaro, remete também ao abraço de dois irmãos em 2012 numa das três camas que dividiam no quarto dos fundos da casa de vó, de mãe e de todos em Araguari, no Triângulo Mineiro. Era véspera do aniversário do saudoso avôhai, que foi morar no céu após cumprir a missão de avô e pai. A última noite antes de atravessar o oceano justamente ao encontro de quem desapareceu por conta própria. A viagem rumo ao passado começaria ali e culminaria num samba improvisado na redação do esporte da Globo, quase uma década depois, em São Paulo.

Foram quase seis meses em Londres. Curiosamente, a travessia rumo ao sonho parecia mesmo mais curta do que de sua terra mãe no interior de Minas, mas vida real é chão, e nem tudo é o que parece. O blog vivia atualizado desde a Copa de 2010. O desconhecido, nem tanto. Da janela, o imaginário transpassava a Vila Olímpica e outros tantos cantos da sede das Olimpíadas daquele ano, mas foi um parque a segunda casa.

Ao observar o futebol impreterível dos domingos, o garoto juntou o trocado ganhado às escuras da madrasta e retornou a Finsbury Park envergando uma chuteira, a bola da Eurocopa e uma camisa da seleção, à época ainda isenta de qualquer ambiguidade. Saiu do parque com um “racha” dominical e parceiros imigrantes de Níger, Zâmbia e outras nações africanas. Depois, marchou com a torcida do Arsenal rumo ao Emirates Stadium para o clássico frente ao Chelsea, onde ouviu o silencioso placar zerado pelo lado de fora.

Em casa, ajoelhado no pé da cama com uma Nossa Senhora Aparecida agarrada entre os dedos, prometeu que um dia viveria de dentro tudo aquilo quase palpável. Era tempo de recomeçar. No retorno ao Brasil, uma mensagem com um convite de João Castelo-Branco para um encontro foi o bastante para curvar outra vez. Era com o jornalista que conversava toda semana entre um desencanto e outro. A temporada europeia, enfim, havia acabado, mas o encanto dentro daquela casa também.

Dias depois, recebeu um convite de Darli Amaral para assinar uma coluna na Gazeta do Triângulo, jornal de sua terra natal, onde perdurou por três anos como repórter, além de pinceladas em programas esportivos e transmissões de rádio. Uma escola para a vida, do tapa-buraco ao descalabro do ginásio de 12 anos de interdição. Mudou-se para Uberlândia, de onde galgou o diploma e talvez o melhor momento daqueles tempos de assessor de imprensa, até juntar a renda para recomeçar de novo, em ares um tanto mais poluídos, sem casa ou emprego, mas no endereço que sempre sonhou.

Foram tantas passagens só de ida para recuperar o passaporte de volta ao esporte que mudar de cidade, estado, país, rota ou opinião jamais foram tabus. Ouvi muito. Três anos e uma pandemia em curso depois, ando por São Paulo como parte dos mais de 12 milhões que tropeçam por essas esquinas. Entre eles, Betânia, a corintiana que trabalhava no Allianz Parque e conheceu a Avenida Paulista após 45 anos na capital. Ou Rivaldo, o palmeirense que escapou da morte por piratas no rio Amazonas. A primeira vez na Libertadores, na Copa América, na Copinha, na Rua Javari. O adeus ao tobogã, no Pacaembu. O bom dia, boa tarde e boa noite no lugar que forjou essa trajetória.

É com essa fome de bola, de rua e de gente que aprendi a entender a falta da comida no prato, da vacina no braço, da cama e teto para deitar e do nome na lista de chamada da escola. É desse mundo graúdo, injusto e com porteiras, entre voto impresso, selfie com miliciano, flerte com a ditadura, pasto para a Amazônia e crime de responsabilidade feito quebra de decoro, que conheci personagens que ajudariam a escrever o melhor capítulo dessa história.

Em junho, realizava o sonho de trabalhar no Grupo Globo, ainda que temporariamente. Bárbara e eu pulamos de alegria. Os telefones da mãe e do irmão, aquele do abraço no quarto dos fundos há nove anos, não demoraram a tocar. Ficaria um mês para um projeto esportivo no acervo, próximo da redação, que observava diariamente pela divisória de vidro enquanto carregava centenas de caixas de fitas beta dos anos 2000 pelo corredor. Era como um piloto de kart que acelera seu carro na pista anexa do Autódromo de Interlagos, sonhando um dia vivenciar o outro lado do muro. Eis que, semanas depois, entraria pela porta da frente daquela imensa sala.

Hoje, volto para casa com a segunda dose da vacina da Covid-19 e um tanto a agradecer. Ao SUS, à vida e à ciência pelo antídoto contra o negacionismo, tão letal quanto bala perdida. “Seu Darli”, que abriu-me as portas para o jornalismo, foi levado pela Covid na véspera da virada de 2021. Com ele, foram quase 600 mil. Certamente, aquele senhor brilharia os olhos se contasse que o garoto participou das coberturas on-line das Olimpíadas, Paralimpíadas e outros certames para o site da maior emissora do país.

Ainda bem que as histórias continuam. Enquanto isso, muros, janelas e divisórias viram pontes para quem acostumou a imaginar o outro lado no amanhã. Na dúvida, escrevo.

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